"Subúrbio" e "periferia" não são palavras associadas ao Leblon, bairro nacionalmente conhecido como sendo um dos mais caros do Brasil. Mas é o que ele foi por boa parte da história de sua ocupação, desde a chegada dos europeus ao Rio de Janeiro no século 16, dizem especialistas que estudam a história da cidade.
Favela Praia do Pinto, no Leblon, em imagem do acervo da Biblioteca Nacional, sem data conhecida Foto: Divulgação / Acervo Biblioteca Nacional
Foi terra de engenhos, depois de chácaras, pescadores, trabalhadores de fábricas e da construção civil. Até que obras urbanas e melhorias no transporte o tornaram mais acessível e mudanças culturais fizeram com que morar perto da praia se tornasse algo desejável.
Lotes de terra foram sendo divididos e mais construções começaram a surgir. Ao mesmo tempo, grande parte dos moradores mais pobres foi removida para bairros distantes.
Com um impulso de novelas da Globo que retratam o bairro como bucólico e agradável, o Leblon se tornou uma espécie de símbolo nacional de parte da elite brasileira.
Recentemente, foi alvo de polêmica nas redes sociais, quando seus bares recém-abertos lotaram de pessoas que bebiam e conversavam sem máscara, contrariando o que recomendam as autoridades de saúde.
Como um "remoto e ortograficamente incerto subúrbio à beira-mar", como descreve o pesquisador Eduardo Silva, se tornou o bairro que hoje conhecemos como Leblon?
Engenhos de açúcar
As terras no entorno do que hoje é a Lagoa Rodrigo de Freitas - e onde ficam vários bairros, entre eles o Leblon - eram arenosas e pantanosas, mas os portugueses perceberam cedo que o terreno serviria para o plantio da cana-de-açúcar. Construíram ali, dez anos após a fundação da cidade, em 1575, o Engenho Del' Rei, como explica Antonio Edmilson Martins Rodrigues, professor da PUC-Rio.
Quando os europeus chegaram, indígenas tamoios viviam ali havia séculos. Pesquisadores dizem que eles foram ou escravizados ou mortos pelos europeus, mas os combates entre eles foram prolongados.
"Conhecedores da região, os Tamoios a fizeram de baluarte e a definiram como um lugar que permitia mobilidade em termos de fuga e de esconderijo. Não é à toa que com a divisão do Brasil em repartição Norte e Sul, Antonio Salema, governador da repartição Sul, tivesse criado o primeiro engenho da região com o intuito de demarcar essas terras como ocupadas. O Engenho Del' Rei é a pedra inaugural da presença da autoridade da colônia na área", escreve Rodrigues num artigo para a revista científica Oecologia Australis.
Segundo Rodrigues, a partir do plantio da cana-de-açúcar, peça importante da economia na época, as margens da lagoa foram sendo ocupadas. Trabalhadores das roças de cana passaram a construir suas casas ao longo da margem com permissão dos proprietários dos terrenos.
A era das chácaras
À medida que o açúcar foi perdendo importância econômica, os engenhos do entorno da Lagoa foram dando lugar a outras atividades.
É dessa era que o bairro herda seu nome, pois ali ficavam, a partir de 1845, as instalações da empresa de Emmanuel Hippolyte Charles Toussiant Le Blon de Meyrach, conhecido como Carlos Leblon, comerciante de óleo de baleia, que era o material usado para a iluminação pública na cidade à época. Seu terreno era conhecido como Campo do Leblon.
Le Blon vendeu suas terras para o português José de Seixas Magalhães, e é aí que acontece a história que aparece na música "As camélias do Quilombo do Leblon", de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Era a época da campanha pela abolição da escravidão, que tinha o apoio de parte da elite. Desse grupo participava Magalhães, que era um comerciante bem-sucedido de malas e sacos de viagem.
Sua propriedade, onde hoje fica a parte do bairro conhecida como Alto Leblon, era um lugar de encontro de abolicionistas e sediava o que o pesquisador Eduardo Silva, da Fundação Casa de Rui Barbosa, descreve como um quilombo abolicionista.
Na chácara, plantavam-se flores, especialmente camélias, que se tornaram símbolos do movimento abolicionista.
A chácara de flores, a floricultura do Seixas, era conhecida mais ou menos abertamente como o "quilombo Leblond", ou "quilombo Le Bloon", "então um remoto e ortograficamente ainda incerto subúrbio à beira-mar", escreve Silva em artigo para a Fundação Casa de Rui Barbosa.
Como esse quilombo funcionava de fato é motivo de discussão entre especialistas. Pesquisador da história urbana do Rio, Nireu Cavalcanti diz que não era exatamente um quilombo.
"Não há qualquer evidência de que houvesse um quilombo ali. O que podia acontecer era que alforriados, durante um período de adaptação, vivessem nessa chácara. Era mais uma coisa simbólica", diz ele.
O quilombo do Leblon não está entre os cinco da cidade do Rio de Janeiro que receberam certificação quilombola da Fundação Palmares.
Silva descreve em seu texto que os escravos fugidos viviam lá e que os abolicionistas não faziam questão de esconder o fato, ao contrário.
"Se pensarmos bem, a simples existência de um quilombo como o do Leblon, assim tão atuante e tão simbólico, não podia deixar de ser um escândalo público permanente, perpetrado nas barbas da polícia. O quilombo do Leblon era um ícone do movimento abolicionista, uma de suas melhores bases simbólicas e um dos seus trunfos para a negociação política. Por isso, na verdade, ninguém parecia muito interessado em dissimular ou esconder a existência do quilombo do Leblon, nem mesmo o Seixas ou qualquer de seus amigos abolicionistas", escreve ele.
"Como aquela que aconteceu, por exemplo, no dia 13 de março de 1886, aniversário do Seixas. A turma abolicionista passou a noite toda na farra do Leblon e só lembrou de voltar altas horas da madrugadas. E vinham eles em animada cantoria pelo caminho, os quilombolas na maior folga do mundo tocando suas violas, e os abolicionistas aos gritos sediciosos de 'vivam os escravos fugidos!' Isso durante todo o percurso a pé, do quilombo até chegar no Largo das Três Vendas, na Gávea, onde ficava o ponto final do bondinho puxado a burro que os traria de volta à civilização."
Praia valorizada, remoções, artistas e 'exclusividade'
"A beleza natural não era tão valorizada culturalmente até os séculos 19 e 20. A ideia da faixa litorânea como agradável tem a ver com mudanças culturais, com o movimento naturalista do século 19. Esse processo explica por que essas áreas que hoje são de luxo eram freguesias", diz Washington Fajardo, urbanista que foi presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) na gestão do então prefeito Eduardo Paes (DEM).
Fajardo e outros especialistas assinalam que essa valorização da faixa litorânea, acompanhada de diversas obras públicas que a tornaram acessível, começou por Copacabana, depois tomou Ipanema e, em seguida, o Leblon.
Ao mesmo tempo, a partir da década de 30, começou a aumentar consideravelmente o número de pessoas pobres na cidade, e a falta de políticas públicas para elas fez favelas crescerem em diversas partes da cidade.
Segundo dados do historiador Carlos Eduardo Sarmento citados num site da Prefeitura, entre 1920 e 1930, favelas cresceram em média 14% ao ano.
Na região do Leblon surgiram duas das maiores, Catacumba e Praia do Pinto, na região onde hoje fica o Shopping Leblon. Juntas, dizem pesquisadores, chegaram a ter dezenas de milhares de moradores. Eram habitadas, dizem os especialistas, por pessoas que trabalhavam nas fábricas que foram construídas no final do século 19 no Jardim Botânico, bairro próximo, e, mais tarde, compuseram a mão de obra que ergue as várias construções imobiliárias onde foram morar as classes altas que deixavam os bairros do entorno da região central.
Esses moradores foram removidos de suas casas e as favelas, destruídas, como parte de uma política urbana que transferiu pelo menos 50 mil famílias entre 1968 e 1975 para bairros distantes do centro e da zona sul.
"Foi aí que a valorização do Leblon ganhou força", diz Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, coautor do livro Leblon (Andrea Jakobsson, 2019).
Mudanças na legislação permitiram a construção de prédios próximos uns aos outros e altos, diz Fajardo.
Assim, Copacabana se tornou um bairro denso, de apartamentos grandes e também pequenos.
"Em Copacabana, os prédios são grudadinhos, tem essa ideia de tecido coletivo, significa uma mescla social, de valores coletivos e valorização da rua, portaria pequenas", descreve ele.
"Nos anos 1970, começa a surgir no imaginário um discurso de que 'Copacabana é muito cheio, muito denso'. Na verdade, isso é uma coisa global, a partir dos anos 1950 começa a surgir a ideia de que cidades densas são ruins, e tem o fenômeno dos subúrbios americanos", diz Fajardo.
Ipanema e principalmente Leblon, diz ele, passam a ter prédios diferentes, com menos apartamentos, com portaria que avançam sobre a calçada, com playground."
O bairro acabou atraindo artistas e foi um dos mais boêmios da cidade nos anos 1980. A memória dessa época está imortalizada em uma estátua do músico Cazuza na praça que leva seu nome, numa parte do bairro que era conhecida à época como Baixo Leblon.
Outro passo importante, acredita Fajardo, foram as reformas feitas no âmbito do projeto Rio Cidade, que tornaram as vias principais do bairro menos caóticas, e a inclusão de partes do bairro nas chamadas Apacs - Áreas de Proteção do Ambiente Cultural.
"Melhorou a qualidade do espaço público e houve uma sofisticação para atividades econômicas. A transição do bucólico para o exclusivo foi veloz. Ganhou uma sofisticação, mas manteve atributos de bairro, de um lugar onde você pode caminhar, onde conhece os comerciantes. E aos poucos foi surgindo esse fenômeno da exclusividade, do particular, com ruas fechadas com cancelas. E encaretou", diz ele.
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